O que aconteceu no voo da UNITED?

Ao longo da semana passada, um inacreditável e trágico incidente com um passageiro da UNITED AIRLINES virou notícia no mundo inteiro, mostrando o poder da Internet nos dias atuais.

O voo UA3411 estava previsto para sair de Chicago/ORD às 17:40h do dia 09.04.2017 (domingo) e chegar em Louisville/SDF por volta de 20:00h, um voo operado pelo “nosso” Embraer E170 (prefixo N632RW, fabricado em setembro de 2004). Neste dia, o voo atrasou, obviamente, e chegou no destino somente às 21:53h.

O INCIDENTE

De acordo com os relatos, o embarque dos passageiros foi feito normalmente e o voo estava lotado. A UNITED precisava garantir que 04 tripulantes, que assumiriam outro voo no destino, fossem transportados.

Foi iniciado o processo de oferta aos passageiros para que se voluntariassem a sair do avião e seguir viagem no dia seguinte. Primeiro, a oferta foi de 400 dólares. Depois, o valor foi elevado para 800 dólares (as regras da companhia indicam o valor máximo de 1.350 dólares). Nenhum passageiro aceitou.

Os funcionários da UNITED decidiram então escolher 04 passageiros e “convidá-los” a se retirar, de forma involuntária.  Em tese, foi feito um sorteio. Um casal aceitou o “destino ruim” e saiu do avião. Entretanto, um médico (Dr. David Dao), alegando compromissos profissionais na manhã do dia seguinte, se recusou a aceitar a “escolha” dele como um dos passageiros que não voariam.

A Chefe de Cabine decidiu chamar os Agentes de Segurança do aeroporto para retirar a força o passageiro, que resistiu à truculência. Quando ele foi arrancado (literalmente) da poltrona, bateu com nariz (que quebrou) e boca (02 dentes quebrados) no braço de uma poltrona e depois foi arrastado como um saco de batata pelo chão do avião. Pelo menos 02 passageiros filmaram o incidente (prefiro não colocar as imagens aqui).

Como pode ser visto, não há nenhuma questão de segurança de voo, algo que, depois dos ataques de 11 de setembro de 2001, se tornou, de forma até justificável para os americanos, algo até paranóico.

O QUE DIZ O CONTRATO DE TRANSPORTE?

Analisei o Contrato de Transporte da UNITED, aquele que todos nós concordamos (sem ler) com os termos no processo de compra de uma passagem aérea (como advogado, tenho até vergonha de admitir isso…).

As cláusulas relevantes que identifiquei são:

  • RULE 21 – REFUSAL OF TRANSPORT (que trata da recusa de transporte pela UNITED)
  • RULE 25 – DENIED BOARDING COMPENSATION (que trata da negativa de embarque pela UNITED)

Reparem que a RULE 25 trata da recusa de embarque. Foi com base nesta cláusula que a equipe da UNITED decidiu escolhar 04 passageiros já embarcados para serem retirados do Embraer E-170. A tradução “livre” desta parte do Contrato é a seguinte (os destaques são meus):

Se um vôo for sobrevendido, ninguém pode ser negado o embarque contra seu / sua vontade até que UA ou outro pessoal do portador pedem primeiramente para os voluntários que darão suas reservas de bom grado em troca da compensação como determinado pelo UA. Se não há bastante voluntários, outros Passageiros podem ser recusados a embarcar involuntariamente de acordo com a prioridade de embarque da UA:

Os passageiros que são pessoas com deficiência qualificadas, menores não acompanhados menores de 18 anos ou menores de 5 a 15 anos que utilizam o serviço de menores não acompanhados serão os últimos a ser recusados involuntariamente se forem determinados pela UA Tal negação seria uma dificuldade.

A prioridade de todos os outros passageiros confirmados pode ser determinada com base na classe de tarifa de um passageiro, itinerário, estatuto de adesão ao programa de passageiro frequente e no momento em que o passageiro se apresenta para check-in sem atribuição avançada de lugares.”

Ou seja, esta parte do Contrato trata da possibilidade da UNITED resolver o overbooking ainda no saguão de embarque, oferecendo compensação financeira e, se não tiver sucesso, escolher os passageiros, podendo usar vários critérios para isso (passageiros frequentes, que pagaram tarifas de valor mais elevado e que fizeram check-in primeiro correm menos riscos). Aqui, surgem 02 “perguntas de prova”:

  • a previsão de “recusar o embarque” pode ser entendida como autorização para a tripulação retirar passageiros de dentro da aeronave?
  • vender 70 passagens para um avião que cabe 70 pessoas, mas transportar 04 tripulantes por questão interna de logística da UNITED, pode ser considerado uma situação de overbooking?

No caso da RULE 21, a possibilidade da UNITED se recusar a trasnportar um passageiro que comprou passagem é tratada. São 09 razões elencadas, de forma resumida e simplifcada:

  • se o passageiro descumpriu o Contrato de Trasnsporte
  • necessidade de cumprimento de regras e regulamentos
  • situações de força-maior (greves, por exemplo)
  • se o passageiro se recusar a passar pelos controles de segurança
  • se o passageiro não comprovar a sua identidade
  • se o passageiro não finalizar o processo de pagamento da passagem
  • em voos internacionais, se o passageiro não apresentar os vistos necessários
  • se o passageiro demonstrar que pode afetar a segurança de voo (curiosidade: o passageiro descalço é considerado uma questão de segurança)
  • se o passageiro causou a algum prejuízo à UNITED

No item que fala de segurança, há 02 pontos que poderiam ser alegados pela UNITED como descumpridos pelo passageiro Dr. Dao: 1) passageiros cuja conduta é desordenada, ofensiva, abusiva ou violenta e 2) passageiros que não cumpram ou interfiram com as obrigações dos membros da tripulação de voo, regulamentos federais ou diretivas de segurança. Para mim, seria um absurdo considerar estas hipóteses, pois estas 02 situações não podem ser interpretadas como a reação dele depois de ser forçado a sair de dentro de um avião, elas precisam ser inseridas dentro do contexto. O passageiro não destratou ninguém e nem causou confusão antes da chegada dos Agentes. Em outras palavras: as 02 situações tratam da CAUSA da recusa de transporte e não da CONSEQUÊNCIA de uma intervenção dos Agentes.

MINHA CONCLUSÃO: não há sustentação contratual e legal para a atitude e decisões tomadas pelos funcionários da UNITED. Assim como em um acidente aéreo, uma série de circunstâncias em cadeia provocaram este incidente, que são:

  1. a oferta de compensação pelo overbooking não foi feita antes do embarque
  2. a oferta feita pela equipe de terra ficou em 60% do valor máximo
  3. a prioridade dada ao transporte da tripulação não é aceitável, reflete uma postura de extrema prepotência da companhia frente ao seu maior bem: o cliente
  4. uma tripulação permitir que um passageiro que não descumpriu nenhuma regra ou procedimento seja retirado a força de dentro do avião é um absurdo por si só

A COMUNICAÇÃO DA UNITED

Oscar Munoz é um executivo respeitado e experiente. É membro do Conselho de Administração da UNITED desde 2004 e assumiu o cargo de Presidente em setembro de 2015. Além disso, ele recebeu no ultimo mês de março um prêmio de Melhor Comunicador dos Estados Unidos (PRWeek U.S. Awards).

A UNITED usou a área de Imprensa do seu site na Internet para fazer Comunicados Oficiais: http://newsroom.united.com/news-releases.

Na 2ª feira (dia 10), o presidente da UNITED fez uma inacreditável declaração que provocou péssima repercussão: as ações da companhia áerea despencaram na Bolsa de Valores americana (perdas estimadas de 1 bilhão de dólares), pois nenhuma desculpa foi direcionada para o passageiro “espancado”:

Response to United Express Flight 3411

April 10, 2017

This is an upsetting event to all of us here at United. I apologize for having to re-accommodate these customers. Our team is moving with a sense of urgency to work with the authorities and conduct our own detailed review of what happened. We are also reaching out to this passenger to talk directly to him and further address and resolve this situation.” – Oscar Munoz, CEO, United Airlines”

No dia seguinte (3ª feira – dia 11), a companhia se viu obrigada a trocar radicalmente de discurso, emitindo um novo comunicado, desta vez assumindo a responsabilidade da UNITED sobre a indesejável ocorrência:

Statement from United Airlines CEO Oscar Munoz on United Express Flight 3411

April 11, 2017

The truly horrific event that occurred on this flight has elicited many responses from all of us: outrage, anger, disappointment. I share all of those sentiments, and one above all: my deepest apologies for what happened. Like you, I continue to be disturbed by what happened on this flight and I deeply apologize to the customer forcibly removed and to all the customers aboard. No one should ever be mistreated this way.

I want you to know that we take full responsibility and we will work to make it right.

It’s never too late to do the right thing. I have committed to our customers and our employees that we are going to fix what’s broken so this never happens again. This will include a thorough review of crew movement, our policies for incentivizing volunteers in these situations, how we handle oversold situations and an examination of how we partner with airport authorities and local law enforcement. We’ll communicate the results of our review by April 30th.

I promise you we will do better.

Sincerely, Oscar”

No dia 12 (4ª feira), o Presidente da UNITED concedeu uma entrevista ao tradicional canal de TV americano ABC, que está disponível no YouTube, onde respondeu a perguntas diretas e até constrangedoras da repórter. Resumindo:

  • ele pediu desculpas ao Dr. Dao, aos passageiros e suas famílias
  • ele reconheceu que o evento não poderia ter acontecido e que a companhia era responsável por isso, afirmando que todas as condições e políticas associadas ao “overbooking” e transporte da tripulação seria repensadas
  • no meio da entrevista, ele trouxe um ponto que para mim é crucial: a companhia avisar para um passageiro que ele não vai embarcar é muito difefente de mandar ele sair, depois de ter acomodado as malas e sentado no seu assento
  • outro ponto que me chamou atenção: Oscar afirmou categoricamente que a UNITED não pode permitir que um passageiro que comprou passagem, chegou na hora e que não cometeu nenhum erro seja arrancado de uma aeronave da companhia; ele diz que o “bom senso” tem que ser algo que precisa estar presente em todas as decisões tomadas pelos funcionários da companhia

Finalmente, no dia 13 (5ª feira), a UNITED fez novo comunicado (desta vez, não foi assinado pelo Presidente Oscar), reforçando alguns pontos que já tinham sido endereçados na entrevista do Presidente:

Statement on Press Conference

April 13, 2017

We continue to express our sincerest apology to Dr. Dao.  We cannot stress enough that we remain steadfast in our commitment to make this right. 

This horrible situation has provided a harsh learning experience from which we will take immediate, concrete action. We have committed to our customers and our employees that we are going to fix what’s broken so this never happens again. 

First, we are committing that United will not ask law enforcement officers to remove passengers from our flights unless it is a matter of safety and security.  Second, we’ve started a thorough review of policies that govern crew movement, incentivizing volunteers in these situations, how we handle oversold situations and an examination of how we partner with airport authorities and local law enforcement.  Third, we will fully review and improve our training programs to ensure our employees are prepared and empowered to put our customers first.  Our values – not just systems – will guide everything we do.  We’ll communicate the results of our review and the actions we will take by April 30.    

United CEO Oscar Munoz and the company called Dr. Dao on numerous occasions to express our heartfelt and deepest apologies.”

MINHA CONCLUSÃO: a comunicação inicial da UNITED piorou ainda mais a sua situação. Me pergunto se o Presidente da companhia assitiu aos vídeos que rapidamente se tornaram virais na Internet. Como ele concordou com o 1º Comunicado? Lamentável…Tenho que reconhecer que a coragem e firmeza que Oscar Munoz demonstrou na entrevista para a TV são notáveis.

A última vez que voei com a UNITED foi no longínquo ano de 2006, de Guarulhos/GRU para Chicago/ORD, na classe Executiva de um Boeing 777-200, usando milhas da saudosa VARIG. Isto foi muito antes de pensar em criar este site, portanto, não tenho condições de falar da experiência de voo com a companhia americana, ela está na lista de avaliações futuras. Mas é fato que ela vai ter muito trabalho para recuperar alguns (muitos) pontos de reputação que foram perdidas a partir deste incidente com o Dr. Dao. Espero que nunca mais a indústria da aviação comercial tenha que enfrentar uma situação como esta.

Notícia formulada em 19.04.2017

5 respostas
  1. Júnior
    Júnior says:

    Ótima análise!
    Fico pensando tb na questão do overbooking , que qualquer um de nós está sujeito, mas da forma como foi conduzido. Uma coisa é não poder embarcar. Outra é ser retirado do voo. E foi feita de uma forma humilhante, merecia ser processada pelo passageiro.
    Mas outra questão é exatamente o overbooking em si, que nesse caso será que realmente foi? O cliente pagante não poder viajar por causa de 4 tripulantes que precisavam se deslocar para assumir outro voo. Será que não havia outro voo com ociosidade que eles pudessem ser encaixados? Pelo que li em outro lugar , aqui no Brasil eles só viajam de extra se sobrar lugar ou em último caso vão num voo da concorrente, para assim poder priorizar o cliente.

    Responder

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